RIO - O ano era 1986. Dia 22 de
junho, GP dos Estados Unidos, no circuito de rua de Detroit. Logo após cruzar a
linha de chegada, Ayrton Senna parou o carro na pista e pegou, com um torcedor,
uma pequena bandeira do Brasil para celebrar sua quarta vitória na F-1,
inaugurando um gesto que se tornaria sua marca registrada. E reforçaria
definitivamente sua relação com a torcida brasileira. Na véspera, o Brasil
havia sido eliminado pela França nas quartas de final da Copa do Mundo do México,
em mais uma decepção do ainda futebol tricampeão mundial na busca pelo quarto título.
Senna queria compensar a frustração dos torcedores. Conseguiu muito mais que
isso: com suas vitórias, tornou-se o símbolo de um país que dava certo, numa época
em que tudo parecia dar errado. Um símbolo de orgulho e esperança.
Brasil que viu Senna chegar à
F-1, em 1984, ainda estava lutando para ter a primeira eleição direta para
presidente após duas décadas de ditadura militar. No dia em que o país chorava
a morte do presidente — eleito pelo Congresso Nacional — Tancredo Neves, em 21
de abril de 1985, Senna conquistava sua primeira vitória na categoria, no GP de
Portugal. Parecia, mesmo, destinado a ser a válvula de escape de uma geração,
que sofria na política, na economia e até no futebol, antes orgulho nacional.
Vitória no Brasil em 1991
Filho de um empresário de
classe média-alta de São Paulo, Senna, obviamente, não sofreu na pele os
problemas do brasileiro padrão. Caso contrário, sequer teria sonhado com o
automobilismo, esporte que requer forte apoio financeiro familiar,
especialmente no início. Não seria surpresa se o campeão que morava na Europa
demonstrasse um certo distanciamento do torcedor comum, aquele que só o via
pela TV ou, no máximo, uma vez por ano ao vivo, no GP do Brasil — no circuito
de Jacarepaguá, no Rio, ou, depois de 1990, em Interlagos, São Paulo.
Mas Senna, a um oceano de distância,
fazia questão de reforçar sua ligação com o Brasil. Fosse na bandeira junto ao
cockpit, fosse no capacete amarelo com a faixa verde e detalhes em azul, ou nas
constantes escapadas para seu refúgio no Brasil, a casa em Angra dos Reis,
litoral Sul do Rio de Janeiro. E o país respondia com um carinho cada vez maior
pelo ídolo. Sobrinho do tricampeão, o também piloto Bruno Senna, que passou
pela F-1 e atualmente corre no Mundial de Endurance, viu de perto o piloto
vitorioso se transformar em referência nacional.
— Ele conseguiu transcender o
esporte e se tornar um exemplo de princípios de vida. Determinação, obstinação,
perfeccionismo, senso de justiça e patriotismo fizeram do Ayrton alguém
diferenciado num esporte onde a política sempre reinou — afirmou Bruno.
Senna foi o terceiro brasileiro
campeão na F-1, consolidando uma hegemonia de 20 anos — o país chegou a ser o
maior vencedor da categoria, com oito títulos de Emerson Fittipaldi (dois),
Nelson Piquet (três) e Senna (três). Se a relação com Piquet, seu contemporâneo
e, naturalmente, rival nas pistas, passou da indiferença à hostilidade aberta,
com Fittipaldi a admiração era mútua e pública.
— A primeira vez que o
encontrei, estava testando o Coopersucar, e ele veio até mim com o Milton, pai
dele. Ele tinha uns 13 anos. Acompanhei o Ayrton de perto, ele foi um
supercampeão. Éramos amigos, nós nos encontrávamos em Miami e no Brasil, mesmo
quando eu estava na F-Indy, e ele na F-1. Do Ayrton, eu só lembro coisas boas —
declarou Fittipaldi.
Com mais um fracasso da seleção
brasileira numa Copa do Mundo, na Itália-1990, não havia mais dúvida de que
Senna, então caminhando para o bicampeonato na F-1, já era o maior nome do
esporte brasileiro na época. No entanto, apesar de todas as alegrias nas manhãs
de domingo, faltava coroar sua relação com a torcida brasileira em casa.
Depois de sete participações
frustradas no GP do Brasil, ele conseguiu, enfim, realizar o sonho em 1991. E a
primeira vitória no país foi conquistada de forma épica, a custo de muito esforço
e determinação para guiar um carro que já não contava com todas as marchas nas
voltas finais. Cruzou a linha de chegada e, só então, deixou-se vencer pela
exaustão, sofrendo com espasmos musculares nos braços e ombros que quase o
impediram de subir ao pódio. Mas, depois de alguma espera, hoje inimaginável
numa F-1 de cronograma rígido, dentro e fora das pistas, Senna estava lá,
acompanhado dela, a bandeira. Expressão de dor, tentou uma, duas vezes, até
erguer o troféu tão cobiçado. Dois anos depois, nova vitória em Interlagos, e
dessa vez não houve drama, mas uma inesquecível festa, com a McLaren sendo
cercada por torcedores que invadiram a pista paulista para comemorar ao lado do
ídolo.
Homenagem da seleção
A última manifestação de
carinho acabou sendo a maior, e mais dolorosa. Três dias após sua morte,
milhares de brasileiros encheram as ruas de São Paulo para se despedir do
tricampeão mundial, durante a passagem do cortejo fúnebre que levou seu corpo
para a Assembleia Legislativa de São Paulo, onde outros milhares passaram horas
na fila para lhe dar o último adeus. Dois meses depois, na Copa do Mundo dos
Estados Unidos, no mesmo país onde Senna empunhou a bandeira pela primeira vez,
para redimir a frustração do futebol, a seleção devolvia a gentileza na faixa
levada pelos jogadores ao gramado na comemoração do título mundial: “Senna,
aceleramos juntos — o tetra é nosso". No coração da torcida, porém, nem o
fim do jejum da seleção amenizou a saudade do ídolo das pistas.
— O Brasil foi tetracampeão nos
EUA, mas a sociedade brasileira não se via tão representada naquela seleção,
pelo seu estilo de jogo. Senna, por sua vez, foi um herói popular do Brasil, um
exemplo — comparou Mauricio Murad, professor de Sociologia do Esporte da Universidade
Salgado de Oliveira.
Em entrevista a Celso Itiberê,
colunista de F-1 do GLOBO, três anos antes da batida fatal em Ímola, Senna
resumiu sua intensa ligação com o país:
— O Brasil é a minha casa, o
meu ponto de referência. É minha terra, onde estão a minha família e os meus
amigos. Onde eu encontro paz. E, com todos os problemas que nele existem, o
Brasil é o lugar onde eu gosto de estar.
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